Dessensibilização & mindfulness

Há uns anos atrás, comecei a meditar para apaziguar o estresse no ambiente de trabalho. Àquela altura, já era bem normal ver pessoas do escritório se ausentando de cinco a dez minutos para um momento de meditação em salas organizadas para isso. À despeito de muita gente usar aqueles espaços para chorar no meio do expediente, acredito que a maioria de nós estava ali realmente praticando meditações guiadas de mindfulness com aplicativos caros (pagos pelo empregador). Às vezes meditávamos até em grupo, como um modo de aguentar a realidade brutal de estarmos dedicando oito horas diárias de nosso tempo para construir projetos que pouco ou nada traziam de bom para o mundo. Com o tempo me incomodei com a razão por trás do método do tal mindfulness e como ele é usado pelo ambiente corporativo. E passei a procurar outras formas de meditação (vipassana, montionless thinking, metta, etc), trazendo a meditação para outras áreas da vida e estudando suas origens. Desconectar a meditação de um objetivo concreto (ou da ideia de algo para fazer no tempo livre) para simplesmente apreciar a jornada fez toda a diferença.

O tempo livre não tem relação alguma com liberdade, mas com a ideia de reposição de forças e energia para o novo dia de trabalho que vem a seguir.

(Panoptismo, Flavia Cataldo)

Faz tempo que entro no youtube e o site exibe ads de animais sendo maltratados. Conheço o gemido do cachorro, o close de uma câmera escondida, a vinheta do PETA e os berros do burro agoniado que substituem o cachorro de vez em quando. Às vezes são porcos. São imagens e sons reais de animais sendo torturados; seja para virarem roupa, comida, para testarem cosméticos, para se reproduzirem à força, as razões são inúmeras e ainda sim são todas a mesma: servir a nós, humanos. Me irritava demais, para não dizer outras coisas. Mando ajudas financeiras constantemente para inúmeras organizações em prol da vida dos animais, parei de comer qualquer tipo de carne há onze anos e desde então venho numa descoberta de uma vida vegana sustentável. Aquelas propagandas não parecem ser para mim, eu já “comprei esse discurso”; e ainda sim, ali estão elas. O incômodo foi sendo substituído pelo desejo de finalmente assinar o youtube premium, só para não ver mais aquilo. Mas a ideia de ter que pagar para não ver sofrimento animal me doeu. E então, eu entendi. O ads era para mim, afinal.

Com o passar das semanas, fui me acostumando a passar por aquele pedaço de crueldade por 5 segundos antes de assistir o vídeo que uso para a prática diária de yoga. Curioso pensar que no ano em que fomos assolados por uma doença que ataca o sistema respiratório e mata as pessoas asfixiadas, eu aprendi a respirar. Eu, que comecei a prática da corrida alguns anos antes como forma de correr de coisas das quais eu não podia fugir de verdade, encontrei na minha cabeça – através da meditação – uma saída para a loucura que o isolamento trouxe. O yoga foi uma consequência de alongar essa experiência pelo resto do corpo. E assim como a meditação traz uma sensação de costume a todo tipo de pensamento ou imagem, o yoga me trouxe a aceitação real de vários sentimentos que me atravessam todos os dias.

Um dos momentos mais significativos de 2020 foi fazer fluxos de posições para lidar com raiva e ódio. Na minha ingenuidade de pessoa comum que nunca tinha praticado yoga por mais de 1 ou 2 meses até então, eu achava que sentimentos sombrios e furiosos como esses não faziam parte do corpo de quem pratica movimentos que trazem tanta leveza e suor. Mas me surpreendi com as “posições iradas” – é assim que as chamo agora – que na verdade fazem você sentir mais raiva do que você estava sentindo originalmente. É como se você abrisse o corpo para a ira te atravessar como um raio; mas diferente do raio, que dura um pedaço de segundo, essa ira te invade como um rio de corrente forte, largo, fluindo enquanto você se arrebenta de dor e suor por longos minutos com o movimento do corpo. Assim, com experiências como essa, fui aprendendo a deixar os sentimentos me atravessarem e me sentir confortável em me expressar com eles. Parece muito com o que acontece quando você começa a meditar e aquela máxima “deixa o pensamento passar” não faz sentido, pois você é puro pensamento, eles vem e vão incontrolavelmente. Respirar é pensar. Pensar é existir. Só depois de muito tempo que você entende como a cabeça abre espaço para que esses pensamentos, que não param de vir, escoam de um lado a outro sem que você se detenha em nenhum deles especificamente. É uma completude sincera, é o presente. E assim você realmente passa a entender como atingir estados reais de alteração de consciência (e às vezes o tal silêncio absoluto ou paz interior, seja lá o nome que cada um dá isso). Foi o que o yoga me ensinou sobre os sentimentos. Eles estão ali, eles fazem parte de mim.

E nessa pegada eu comecei a aceitar as imagens e sons horríveis nos ads do youtube. Mas diferente das práticas meditativas, eu não sosseguei com aquilo. O incômodo só cresceu, por muito tempo. Até que um dia, eu parei de me incomodar. E passei a me perguntar o quão cruel era me submeter a uma auto-dessensibilização das coisas. Eu não quero parar de ser sensível ao sofrimento desses animais. Eu não quero parar de me revoltar com a presença dessa propaganda específica na minha cara.

O anúncio do youtube funciona em vários níveis. Ele vem sob medida, direcionado por conta dos canais que eu assino – estudos sobre exploração animal, análises de discursos sobre direitos dos animais, receitas veganas – e pelo próprio ato de todos os dias assistir a um video de um canal de aulas de yoga. É mais do que claro para youtube que eu me preocupo com a causa animal. É um perfil onde eu me encaixo como uma luva. E as minhas opções são: clicar no botão de donate e mandar uma doação para o PETA através deles (o que provavelmente vai fazê-los me mostrar cada vez mais anúncios desse tipo), ou assinar o youtube premium e não ser mais incomodada por nenhum tipo de ads. A única saída para a situação é aceitar o incômodo e me dessensibilizar com os vídeos de animais torturados que me mostram todos os dias. É como o mindfulness das empresas funciona: faz você continuar aceitando em paz os sentimentos aterradores que o estresse no trabalho traz. É a normalização da falta de empatia. A anestesia compulsória por exposição.


Um dica: no meu computador, eu uso os adblockers (o navegador Opera já vem com um nativo bem bom). Mas costumo usar o aplicativo do youtube no celular para assistir o yoga e os adblockers não funcionam. Ultimamente, tenho tirado os fones e olho para outro lugar pelos 5 segundos antes do vídeo começar.

Uma outra dica: o canal de yoga que vem me fazendo companhia é o da Pri Leite, com muitos flows vinyasa.

Andando na escuridão

Fotografia preto e branco, vista aérea da paisagem da área central de Estooolmo com trilhos de trem e prédios ao fundo

Há uma velha tradição aqui na Suécia que consiste em deixar velas acesas nas janelas de todos os lugares durante o inverno. Hoje muitas são substituídas por lâmpadas amarelas em luminárias discretas, sinalizando a localização das casas, dos apartamentos, dos estabelecimentos. Em um país que fica sob o domínio da escuridão metade do ano — ok, os meses mais críticos são apenas dezembro e janeiro, reconheço — e onde a iluminação pública é escassa — não por falta de investimento do setor público, mas porque iluminação demais compromete o desenvolvimento da fauna local —, as luzes nas janelas são úteis a quem se desloca por aí. A pé ou a rodas. Com o tempo, aprendi que misturar a luz das lâmpadas com a luz das velas é um fenômeno natural, acontece na intimidade dos lares e no vai e vem de corpos dos espaços públicos, de restaurantes a escritórios. Fui pegando gosto por enfeitar a sala com velas. Depois o quarto. O banheiro, o corredor, a cozinha. Nas embalagens, as informações gráficas são sempre as mesmas: essa vela dura tantas horas acesa, cuidado com as cortinas, não deixe a vela queimando onde há crianças e animais sem supervisão, etc. A minha diversão com a escuridão onipresente acaba por aqui. No início, eu estranhava as pessoas reclamando quando a neve não vinha no inverno. Sim, isso acontece às vezes. Com o tempo, percebi que os invernos sem neve são mais escuros, ficamos dependentes da lanterna do celular e dos caminhos que já percorremos vezes suficientes para não nos perdermos. Contamos com a boa vontade da população com as luzes acesas nas janelas. 

Rolar a tela do computador pelas notícias é muito parecido com esse sentimento de caminhar no escuro, entre pessoas que você não conhece, tentando achar passagem por onde o terreno é conhecido, tomando cuidado para não tropeçar em um buraco ou galho atravessado pelo chão. Até que você acostuma a andar no breu e faz as pazes com ele; assim como aprendi com o tempo a navegar apenas por essa ou aquela fonte de notícias no mar de informações da internet. Verificar os fatos sempre que possível. A apuração do jornalismo se espatifou; o público agora também precisa conferir tudo. É exaustivo para todos.

Quando a neve cai, as luzes das janelas se estendem por quilômetros, porque tudo se reflete no tapete branco que cobre tudo. Consigo enxergar pontos distantes na paisagem porque a brancura acompanha o olho pelo caminho até a linha do horizonte. E é fácil andar por lugares onde nunca estive antes. A bota afunda no macio dos flocos de gelo e depois de um tempo podemos caminhar até mesmo sobre a água. A neve é um milagre. 

Existir no meio de uma pandemia e no redemoinho de informações desencontradas me faz ansiar por um milagre que ilumine as coisas assim como os suecos ansiam nervosos pela neve que ilumina o caminho. Por enquanto, conto com as luzes nas janelas. As mensagens de quem sinaliza que há vida acontecendo na intimidade de nossos isolamentos são as luzes que velam minha travessia por esse período difícil, mais aterrorizante do que dois meses na completa escuridão. Espero que um dia possamos acordar depois desse inverno interminável para uma primavera tão preciosa como as que eu vejo florescer ano após ano aqui do outro lado do mundo.

Ainda que às vezes o inverno seja tão longo que a própria primavera, que deveria chegar em março, aparece só em maio. E até lá, temos apenas uns aos outros para nos manter acordados pela escuridão. 

Não olhe para mim, eu posso chorar

E essa semana chorei tanto que entendi como Obirici pariu um rio com as próprias lágrimas. Chorei de tristeza sozinha, saudade de uma coisinha aqui, uma coisinha ali, o rombo que faz  a ausência de um continente inteiro, do outro lado do oceano. Tristeza é maré de água salgada nos olhos, e essa maré arrebentou todos os dias dessa semana no escuro da minha pequena solidão. Mas nem por um segundo senti pena de mim mesma, pois era o pranto de uma tristeza minha, só minha, e eu não queria compartilha-la com mais ninguém. 
Às vezes converso comigo mesma nesses dias de fossa, aos soluços, porque é essa tristeza que me esfrega no rosto a condição em que todos nos encontramos esse ano (e todos os outros). E me lembra que somos tão sociais, mas tão sociais, que até sozinhos sofremos juntos. Tenho certeza que eu não era a única pessoa do mundo chorando no escuro essa semana. E essa amargura que vem me consumindo é contemplar um futuro próximo sem as expectativas do que me mantinha na linha antes — e eu nem sabia.

No início desse ano, quando tomamos conhecimento da pandemia, muita gente começou um diário de quarentena. Algo me empapuça a garganta só de lembrar das ideias que fomos construindo artisticamente para o futuro naqueles primeiros dias. Eu sabia que sairia desse período difícil transformada, mas o que eu não esperava era já me ver transformada aqui, agora, muito antes desse pesadelo ter acabado. E mesmo que todos os humanos sejam mais ou menos tristes em diferentes momentos da vida, cada tristeza é única, incomparável.

Eu nunca tinha conhecido pessoalmente alguém que tivesse ido a outro país até ali pelos meus 14 anos. Foi quando uma amiga, que conheci em um antigo fórum de internet, me contou que iria para Itália fazer intercâmbio. Eu fiquei imaginando como seria pisar em outro continente, respirar o ar de um lugar tão distante, tocar em árvores que nasceram naquela terra tão longe da minha. Pensava na existência de outros países como quem concebe mundos criados nos livros, tão distantes eles eram da minha realidade quanto os quilômetros reais que nos separavam. Para mim, a Grécia e o Reino Unido figuravam no mesmo local do mundo das ideias onde ficava Terra Média e Nárnia. Jamais imaginei que eu teria a chance de eu mesma visitá-los um dia, com essa pele e essa cara que me carregam pelo mundo desde que nasci. Agora já são mais de cinco anos que esse corpo aqui habita terras de outro continente. E finalmente percebo aquilo que me sustentava navegando a maré da saudade esses anos todos. Sei o que me embalou no mar revolto das dificuldades em ser permanentemente uma estrangeira – qualidade que me destaca desde Porto Alegre, minha terra natal, onde há muito tempo eu sou a estranha que mudou pra São Paulo, em São Paulo, onde cheguei gaúcha e fui embora como a amiga que mudou para a Suécia, na Suécia, sou a brasileira louca que mora no frio. A expectativa da visita ao Brasil tem me sustentado firme nesses anos longe. Durante os meses que separam o momento de cruzar o oceano Atlântico, a data da partida vira um selo mágico. A passagem de avião, o destino a felicidade. 

A pandemia me tirou essa data, me arrancou as expectativas concretas dessa visita que tanto me nutre. Começo a perceber que pisar no Brasil é a confirmação brutal de que ele existe. De tanto tempo morando aqui no velho continente, me apego às memórias de lá como quem corre atrás do chinelo preso na beira da praia, antes que o mar carregue pra longe, para sempre. Aos poucos, minha terra vai tomando esse lugar de mito, esse espaço mágico onde o chão e o ar são diferentes de todos os outros lugares do planeta. Porque cada lugar é único, cada água de rio se ajusta à forma do terreno e ao desenho da beira que a limita; mas é o terreno que muda com a corrente de água com o passar dos anos. 

Choro de saudade da minha terra, daqueles que um dia abracei e até mesmo daqueles que nunca sequer vi ao vivo, mas que já são capazes de abrir mais ainda esse rombo no meu peito. Luto contra essa sensação de que o Brasil vai tomando um lugar vago ao lado dos lugares que povoam minhas fantasias. O Brasil é real; ele precisa ser real. Porque eu sou real.

E eu hoje anseio pela tempestade, daquela que molha o corpo da cabeça aos pés em dois segundos, o temporal que lava tudo, tudo. A própria renovação. 

Meus soluços chovem umas dores que são só minhas. Tão minhas que não quero dividi-las com ninguém mais.  


Crédito das imagens: Todas as artes desse post são obras da artista Albane Simon.

Esse post faz parte da blogagem coletiva da #EstacaoBlogagem. O tema dessa semana foi o naipes de Copas do tarot.

Rainha de ouro

Me brutalizava profundamente a ideia de que minha tia estava fundida às paredes da casa. As tábuas do assoalho rangiam o dia inteiro sob os pés de todos nós, os que iam e vinham, enquanto ela permanecia selada ao universo que se desenrolava entre as paredes de tinta lascada, aqueles retratos de nossos antepassados perdidos aqui e ali, como estrelas anônimas em um céu meio nublado. Foi com ela que aprendi o valor de uma boa história. E que um quilo de farinha com água e sal alimenta uma família de cinco por um dia inteiro. 

A mais velha de doze irmãos. As histórias da minha tia eram o ouro das visitas de domingo, eu me deslumbrava no poder da mulher que narrava a própria vida. O teto da casa se apoiava na voz dela. O fogão a lenha era seu pajem. E nós éramos só um bando de corpos feitos da mesma matéria, tios e primos, atraídos pela força que o corpo dela, e só dela, exercia sobre os nossos. Reunidos na cozinha, de onde ela orquestrava sobre a vida de todos. Abraço e abença.

O dinheiro dos outros habitantes da casa paravam nela e dela se redistribuíam para prover futuro e segurança a todo mundo que batia à sua porta. Sua magia escorria para além do conforto; em sua rigidez, ela provia certezas. Me causava fascínios e muitas perguntas, mas eu gostava mais de ouvir e observar para ver como a vida se desenrolava para fora daquela mulher, filha do mesmo pai e da mesma mãe de minha mãe. Se eu pertencia a minha mãe por razões de sangue, também pertencia àquela mulher. Eu queria pertencer àquela mulher. 

Eu era só uma criança quando costurei essa malha ao redor de minha tia, preenchendo lacunas em seu comportamento naqueles espaços que não batiam com a vida dos outros adultos que eu conhecia – o movimento dos corpos que estavam sempre indo ou vindo de algum lugar, permanentemente buscando coisas, trazendo compras, indo trabalhar. Até quem não trabalhava  trabalhava; havia filas de banco para serem preenchidas, lotéricas a serem visitadas, ingredientes a serem comprados na conta do caderninho do mercado. E quando a tia precisava de algo do mundo lá fora, era sempre um outro alguém que ia buscar; pois para ela só podíamos, todos nós, ceder a magia do sim. Sempre. E eu crescia, as plantas cresciam, os cães pariam outros cães, os ovos chocavam e minha tia permanecia confinada à casa, como se lá tivesse nascido, morrido, vivido, tudo de uma vez, em um único ano, e nós todos estivéssemos voltando para lá sempre no mesmo domingo, repetidamente. 

A tia era a figura da casa dela e de todas as outras também, o puro símbolo do acolhimento. Era para lá que todos os adolescentes da rua iam quando aprontavam uma e sabiam que a surra de vara os aguardava em seus lares. Era para lá que eu, do fundo do meu coração, sabia que poderia ir a qualquer hora do dia e da noite, sob qualquer circunstância, e seria recebida com alegria e um pão com manteiga num pires de vidro marrom.

Nunca vi minha tia fora de casa. Nem depois de adulta. Meus ossos mudaram minha face, minha altura, o número do meu sapato; os ossos da tia permaneceram encurtados nos dedos do mesmo jeito de sempre, onde ela amassa a massa de pão. Mais alta, eu pude vê-la também de outros ângulos. No topo da cabeça, de repente havia fios brancos. 

Pelos seus braços passam todos os quase dez bebês que a família produz a cada ano. E as rugas nos cantos de sua boca se acomodam com conforto nos últimos domingos em que lá estive. As tristezas que ocasionalmente lavam seus olhos sempre vem lá de fora. O universo das paredes é o intocado lar de uma mãe, mãe das mães. 

Minha tia que nunca teve nada dela, exclusivamente dela, que me botou na cabeça a ideia de que a felicidade é um sabor que a gente degusta aqui e agora, com o que temos nas mãos; enche a barriga e agradece esse momento. 

Rainha do ouro da memória, do presente. Nós somos o que somos porque nas paredes da tia, pertencemos. 

Abença, tia.

{Esse texto faz parte da iniciativa de blogagem coletiva Estação Blogagem. O tema da vez era o conjunto de Ouro dos arcanos menores do tarô.}

Falando sueco na Catalunha

Viajar para uma terra diferente, com estrangeiros de um outro lugar mais diferente que o primeiro. Ainda me parecia uma transgressão idiomática enquanto eu voava para Paris num avião cheio de vikings. Os ossos de ouvir os barulhos dessa língua filha da puta – que às vezes entendo, outras me perco. Sueco chega nos meus ouvidos como um vagão de montanha russa trafega até o final da linha: altos e baixos, às vezes ruidoso, às vezes mudo. Tem aqueles picos em que entendo uma frase inteira, mas depois despenco em uma confusão de fonemas cujo significado me escapa como um grito engasgado no loop. Pois eu estava ali no avião com aquela gente, usando o meu conhecimento surrado de francês com a tripulação da Air France, tentando justificar os seis anos aprendendo essa que deve ser uma das línguas francas que menos usei na vida toda. Mas aí eu me voltava para algum dos conhecidos, e toda vez que tentava falar sueco de novo, dava um jeito de inserir um bureau ao invés de byrå, ou um ao invés de pour quando tornava a falar francês. Em outros tempos me soaria chique. Mas chego ao fim da rota falando em inglês com ambos, amigo e aeromoça. E se reclamar, falo duas vezes. (Ok, eles nunca reclamam. Os suecos, pelo menos).

O mar em Barcelona.

Aterrissamos em Paris para trocar de avião. A viagem, na verdade, era de Estocolmo para Barcelona. Um lugar em que você, brasileira, fica tentando pescar a palavra para saber se é catalão ou espanhol (eu e o meu espanhol de base portenha e nível avançado em Chapolim Colorado). A viagem era à trabalho, para tratar de coisas como workshops e team building da empresa, etc – o que poderia ser simplesmente descrito como quatro dias bêbados na volta do mar Mediterrâneo com meus colegas de trabalho (todos suecos). Muito diferente de fazer turismo com seus amigos, tente fazer turismo com pessoas de outra nacionalidade. Não aquele tipo de viagem que você faz com uma turma jovem, cada um vindo de um país diferente. Mas uma viagem em que você vá apenas com membros de um único país que não seja o seu. No final de um passeio de barco havia uma esteira estreita à nossa frente, e um funcionário do barco estava disposto a nos ajudar a desembarcar, visto que não havia nada onde pudéssemos nos segurar. Minha chefe, ao ver a mão do catalão estendida para si, não hesitou antes de segurar bem firme, sacudir e cumprimentar “adiós!”. Então ela, sozinha, saltou do barco em um pulo profissional. O cara ficou desconsertadíssimo. Eu ri. 

Em algum momento da viagem ganhamos um tempinho livre para fazer o que quiséssemos. A maioria das pessoas simplesmente foi para o hotel dormir; eu fui para rua e aluguei uma bicicleta. Tinha somente duas horas para caçar todos os Gaudí (não pokémons, veja bem) que eu conseguisse. Em uma subida extenuante ao popular Parque Guell, fui questionada por um desconhecido “por que você não deixa a bicicleta lá embaixo e sobe a pé?”. A despeito da invasão ao meu silêncio, lhe dei o direito de ser respondido com um “porque sim” seco. E o cara me lançou isso: “olhe para você, você está suando como um homem!”. E ele ficou parado me esperando deixar a bicicleta. Eu continuei meu caminho rindo, resfolegando e ainda virei para ensiná-lo: “eu estou suando como um ser humano”. Deixa de ser metido, hombre

Vista de cima de Barcelona.

Eis que, depois de um ano e meio de Suécia – praticamente vivendo dentro de um board minimalista de design escandinavo no Pinterest – dar de cara com as misturas de estampas na Catalunha me causou um arrepio. E foi bom, viu. Deu um respiro, foi como abrir as portas para um mundo paralelo encantando, como se as paredes de todos os lugares estivessem infestadas de calor; ondas de felicidade incrustadas no concreto, na madeira. E assim como esse “respiro” visual, achei que meus ouvidos também ganhariam uma trégua. Afinal, faziam quatorze meses que eu não pisava em um país sequer que falasse alguma língua latina. Mas ao primeiro passo na praia, fui informada que toda a viagem se daria com instruções e debates em sueco. Muy bien, compañeros. E assim foi. Em uma das noites, na balada, alguém me perguntou onde as pessoas estavam indo. E eu, explicando que as pessoas estavam indo lá fora fumar, me senti muito malandra usando uma gíria que tinha aprendido na viagem. Respondi que eles estavam indo slakta en gås. E então descobri – do jeito mais vergonhoso possível – que isso era uma gíria para dizer que as pessoas estavam usando drogas. É, acontece.

A Catalunha ficou gravada em mim com o colorido das roupas estendidas para fora nas ruas, gosto de vinho branco gelado, cheiro de mar e o som de suecos falando sobre fluxo de trabalho com novas metas de entrega para os próximos dois anos. 

Fazem quatorze meses que moro aqui, longe. E de tudo isso, aprendi que a palavra não salva o mundo nem as diferenças. Mas ela transforma as pessoas. Ah, as pessoas.

Jag kom till ett ställe där jag skulle stanna 

i fyra nätter men jag stannade fyra år 

Nån sade: Ni har vållat kommunen betydande utgifter 

Jag sade: det här är min situation 

En liten modig katt kom till min undsättning 

Det var som en dröm men jag drömde inte

Cheguei num lugar onde iria ficar 

quatro noites mas acabei ficando quatro anos 

Alguém falou: Você ocasiona custos elevados ao município 

Retruquei: essas são as minhas circunstâncias 

Um felinozinho destemido foi a minha salvação 

Aquilo até parecia sonho só que eu não estava sonhando

Tua Forsström

(poeta finlandesa –  tradução de Luciano Dutra)

Esse texto foi originalmente escrito em setembro de 2016, publicado no meu antigo blog, Lagom Rocks.

Precisamos transar

Originalmente publicado em meu antigo blog Lagom Rocks, em 2015.

Desde que a mudança de país se estabeleceu como um fato concreto na minha vida, tenho visto desfechos surpreendentes para muitos assuntos e resoluções que estavam abertos. Desde uma inscrição tardia na academia de ginástica até uma mensagem inesperada de uma pessoa com quem eu não falava mais, ando numa corrida ritmada contra o tempo. Assistir uma ópera em russo no Teatro Municipal de São Paulo [x]. Fazer musculação [x]. Consertar o sofá [x]. Escrever um livro [x]. Frequentar aulas de yoga [x].
A proximidade da mudança faz minha vida se movimentar como nunca. Nada como uma boa desculpa para finalizar projetos e “fazer coisas”. Mas nada se compara às surpresas que surgiram sem que eu tenha planejado.

Há meses atrás passei a fazer parte de um grupo de leitura atenta, encabeçado pela Julia Alqueres. Nos reunimos para ler textos em voz alta, às vezes um mesmo trecho repetidamente, e conversar sobre a experiência da leitura. Parece simples, mas ler pode ser tão dolorido quanto escrever. A cada duas semanas trabalhamos um autor novo. Passamos desde Toni Morrison até Guimarães Rosa, e nesses últimos encontros estávamos trabalhando textos de Vilma Arêas. Tratando-se de uma escritora de mão cheia e uma pessoa muito legal, a Julia conseguiu trazê-la em carne e osso para conversar conosco. E agora eu penso que não poderia ter despedida melhor do Brasil do que conmhecer essa senhora um mês antes de partir.

Além de estudar Clarice Lispector, a Vilma conviveu com ela – chegaram a fazer terapia juntas. Vilma tem uma vida e tanto, contou causos da época da ditadura, quando foi presa, com leveza e humor ácido – uma franqueza crua e desaforada que só uma carioca poderia ter. O nosso encontro me fez enxergar mais coisas sobre mim do que sobre ela; Vilma me ajudou a organizar os pensamentos. Quase uma infâmia da minha parte, pois nessa idade eu já deveria saber o óbvio: os mais velhos sempre sabem. Há muito tempo eu venho indagando a minha obsessão com listas – tenho listas para tudo: afazeres domésticos, atividades profissionais, contos para escrever, sentimentos que tive, motivos para continuar escrevendo, etc – e qual é o papel delas no meu processo de escrita. A despeito de tudo o que venho aprendendo com Umberto Eco na jornada das listas pela arte, Vilma chegou como um vendaval para sacudir minha alma e deixar apenas o claro e evidente: escrever organiza a cabeça.

As listas começaram a aparecer na literatura há muito tempo, ali nos poemas gregos, como uma aposta humana na possibilidade de enxergar as coisas à sua frente. A arte é uma tentativa de captar algo real, dentro de nós, em uma tentativa de guardá-lo em algum lugar seguro, de modo que possamos o visitar depois. Mas você não pode captar a realidade, nos disse Vilma. Toda memória é um segredo da nossa própria mente que criptografa as vivências com um segredo que ninguém mais pode decifrar. Salvo as listas práticas, de supermercado por exemplo, escrever é listar palavras que precisamos recordar na hora de botar no papel. Organizar coisas. Organizar nosso cérebro.

Em Um estudo em vermelho, Sherlock Holmes explica para dr.Watson:

“Para mim, o cérebro humano, em sua origem, é como um sótão vazio que você pode encher com os móveis que quiser. Um tolo vai entulhá-lo com todo tipo de coisa que for encontrando pelo caminho, de tal forma que o conhecimento que poderia ser-lhe útil ficará soterrado ou, na melhor das hipóteses, tão misturado a outras coisas que não conseguirá encontrá-lo quando necessitar dele. O especialista, ao contrário, é muito é muito cuidadoso com aquilo que coloca em seu sótão cerebral. Guardará apenas as ferramentas de que necessita para seu trabalho, mas dessas terá um grande sortimento mantido na mais perfeita ordem. É um engano pensar que o quartinho tem paredes elásticas que podem ser estendidas à vontade. Chega a hora em que, a cada acréscimo de conhecimento, você esquece algo que já sabia. É da maior importância, portanto, evitar que informações inúteis ocupem o lugar daquelas que têm utilidade.”

A despeito de não ser fã de Sir Arthur Conan Doyle, concordo com o raciocínio de Sherlock nesse trecho. Seria muito tolo imaginar que podemos guardar todas as informações em nosso cérebro. Para isso elas estão aí: as listas e a literatura.

Eu e minha pilha de diários sabemos. Toda vez que abro um deles, leio sobre algo que eu não fazia a menor ideia que já havia acontecido. Preciosidades. Imagino todos os tesouros que terei colecionado até os 90 anos.

Para mim, os poemas são o meio mais apropriado para guardar sentimentos, principalmente quando nos falta qualquer tipo de expressão de exatidão. Os versos são criaturas selvagens, de difícil previsão de comportamento. Não devem ser domados. Que nos devorem inteiros! Se você passar ileso pelo poema, temos problemas.
O poema geralmente me ataca num ponto entre o baixo ventre e o umbigo, uma pontadinha que dilacera a carne do corpo de fora a fora. Ou cai como um peso que faz minha alma descer para o pé, parafraseando Vilma. Ou me enche de calor, de um febre avassaladora. Poemas que adoecem me curam. Listas de sentimentos organizados para um coração cansado.

Enquanto conversávamos sobre poemas e o mercado editorial com Vilma, nos sentimos abismados com o fato de que ler poesia é também um ato revolucionário. Vai contra toda a política de expectativas desse século. Enquanto as pessoas esperam textos para serem lidos à pauladas, com precisão e rapidez, poemas são tiros de morte lenta, para serem apreciados devagar. Não há alma que se contente com poemas lidos como tiroteios, como se o livro fosse uma metralhadora. E Vilma respondeu nossas dúvidas com o óbvio, novamente: você tem que transar com o poema.

Fiquei com isso dentro de mim. Em uma rotina de muitos afazeres a cumprir, e listas para organizar, é preciso transar. Com o mundo, com tudo. Pausar a vida para sentir a vibração gostosa do prazer das descobertas, das conquistas. Na minha lista de “coisas para fazer antes de mudar de país” não há espaço espaço para transar com a vida.

O encontro com Vilma entrou para minha lista imaginária de “coisas que aconteceram sem que eu tivesse as listado”. A minha lista do indizível, do impreciso. Do desconhecido. A lista onde não há itens a serem assinalados, apenas fatos a serem adicionados com o único tempo a que pertencem: pretérito perfeito.

Como matar uma fada

Originalmente escrito no meu antigo blog Lagom Rocks, em 2015.
É uma carta para minha irmã mais nova.

Mana,

Quando eu tinha a tua idade cultivei sonhos que nunca se concretizaram. Mas tudo bem, porque eu não os quero mais. Ia começar essa carta te contando que a gente é infantil em vários níveis, mas depois a gente cresce. Só que eu ainda não cresci tanto assim também. Por exemplo: ontem eu decidi que não confio em quem não gosta de Clarice Lispector. Se for uma pessoa nova, eu perdôo. Se for uma pessoa pouco familiarizada com literatura também. Mas só isso. Li dois livros ontem, um dela e outro de uma moça que tem a minha idade e escreve sobre fadas. E conclui que: tem gente que é boa, e tem gente que é gênio. Paciência. (Tem gente que escreve sobre Londres e gente que ensina a viver. Há de se separar o joio do trigo).

Houve um tempo em que eu ficava no muro e achava lindo. Eu tinha 18 anos. Tratar tudo com parcimônia, manipular o ar e deixar todos confortáveis com a minha presença. Mamãe me ensinou: seja sempre agradável. Com o porteiro do prédio até o dono da empresa. Com o cachorro da vizinha até o prefeito da cidade. Ninguém disse que não dava para ser amavelmente escrota. Até eu descobrir sozinha – levando muita porrada. A vida é assim.

Gastei uma dúzia de anos no esforço para ser uma fada. Bonita, bondosa, inteligente. Esperei pacientemente que as asas brotassem no meu corpo imaculado. Me disseram que se eu fosse dócil o suficiente, tivesse amigos que bastassem e talento que se sobresaísse, tudo daria certo. Um dia mandei a fatura para o universo me pagar. Recebi de volta uma carreira em um mundo machista, um relógio de pulso da Betty Boop arrebentado por um namorado violento, três empregos frustrantes um atrás do outro e uns segredos para enterrar.

Mas: eu tinha um fogo. Uma vozinha sarcástica e raivosa que dizia VOCÊ NÃO SABE DE NADA. E eu não sabia mesmo. Aprendi pelo caminho. Mandei meus açucares “para as cucuias” – como diria nossa mãe. Fui ter comigo mesma para saber o que eu queria.

E eu não fazia a mínima idéia, claro.

É assim que a gente solta o nosso veneno no mundo, ou pega o demônio pelos chifres. E doma. Capture o animal vivo, traga junto do seu corpo e rasgue o couro à unha. Vai ser horrível. Não importa. O demônio precisa sangrar e você precisa viver. Mamãe e papai tinham orgulho – de mim, não da minha besta – mas nem eles sabiam direito onde aquela velha casca de docilidade iria me levar. Provavelmente no máximo a vinte quilômetros de distância, uma casa, um jardim, um berço, um chimarrão e férias-prêmio. Mas o demônio sangrava embaixo do couro. Ele precisava sair, e a casca tinha que quebrar.

Com quantos paus se faz uma canoa? Com quantos feridos se forma uma tragédia?

Eu sentia um chamado distante, um cheiro de presas novas – por isso parti. Para correr com outras bestas, fazer a matilha das lobas. Meu destino nunca foi ser fada.

Meu coração é selvagem.

O que eu queria te dizer, mana, é que às vezes dói estar longe. E que eu queria te dizer que tu também tens um demônio aí dentro. Deixa ele sair. Existem apenas dois perigos para quem tem 18 anos: estar confusa demais ou ter certeza demais. Deixa a tua roda da fortuna girar e lembra sempre que eu estou aqui, correndo com as lobas pela Terra, que o mundo é cíclico, e que quando eu passar por aí é só se juntar ao bando.

Ou pedir ajuda pelo Skype.

Conte sempre com as lobas.

Quatro anos de amor em SP: avance oito casas no tabuleiro

Originalmente publicado no meu antigo blog Lagom Rocks, em maio de 2015, enquanto me preparava para mudar do Brasil para a Suécia

Esse texto era um manifesto de carinho pela Vila Madalena, mas virou um manifesto de amor por São Paulo – da Vila, pouco falei. Ainda que exista todo um lirismo em caminhar com passos metrificados por ruas chamadas Girassol, Fidalga, Harmonia, Purpurina. Uma sensação de estar em um lugar onde a cada esquina podemos encontrar uma poeta. Nas ruas da Vila Madalena, que nem são tão estreitas assim, aproximei meu carinho por uma São Paulo privilegiada nos últimos anos. Financeira e artisticamente. Quando pisei no chão úmido da cidade, de mala e cuia (literalmente, gaúcha que sou), fui acolhida na casa de uma amiga no Alto de Pinheiros, tão próximo e tão longe da Vila – onde eu trabalhava. Tomava cerca de dois ônibus para chegar ao escritório, e pouco sabia sobre os bairros por onde eu passava. Largo da Batata era onde eu descia do primeiro ônibus, e que de batata não tinha nada: era só areia vermelha, gente, trânsito e obras. Queria mesmo era morar na Paulista, com todas aquelas luzes que faziam eu pensar que viveria para sempre em um eterno Natal. Não demorou muito para que isso acontecesse, e em algumas semanas eu estava acomodada por lá. Não sem antes passar uma temporada de dez dias no centro da cidade, no décimo terceiro andar de um edifício cercado pela Cracolândia – que prefiro chamar de Desesperançolândia.

O amor em SP

“[…] a leveza do pensamento pode fazer a frivolidade parecer pesada e opaca”.

Ítalo Calvino

em Seis propostas para o próximo milênio

Vim para São Paulo com essa promessa de um trabalho melhor, mas a grande verdade é que encontrei uma corrida louca para ver quem ficava mais horas trabalhando além do expediente. Muito rápido eu entendi porque todo mundo chegava depois das 10. E nem tão rápido assim, eu descobri o que era O Rodízio. Ouvia as pessoas cochichando pelos corredores sobre o tal O Rodízio e não entendia o que era aquela comoção de ajustes de horários. Tinha vergonha de perguntar o que era e parecer muito caipira (logo eu, que vinha de outra capital). Um avisava o outro que estaria n’O Rodízio no dia seguinte, e todos se apressavam para ajustar horários de reunião e de almoço. Logo imaginei que O Rodízio era um complexo sistema de caronas que as pessoas prestavam umas às outras, para evitar entulhar ainda mais a cidade com carros. Ledo engano. O Rodízio nada mais era do que uma sequência de números – ou letras, nunca sei – de placas de carros que não poderiam circular em determinados horários pela cidade, com a pena de serem multados, e mudava todos os dias. No final, eu não estava tão errada, O Rodízio era só algo que ajudava a cidade a reduzir o número de carros no horário de pico. E logo descobri que muitas pessoas tinham mais de um carro para poder burlar o rodízio. Minha visão romantizada de ajuda mútua entre as pessoas se desvaneceu.

O centro

“A questão da hierarquia sempre foi da mais profunda importância em tempos de guerra, não só pela disciplina militar, mas também no momento da derrota, o homem pensa fechando o livro: alguém tem de sofrer a queda”.

Fábio Fernandes

no conto Os alferes de ferro

em Vapor punk: novos documentos de uma pitoresca época steampunk

Pedi demissão. Ou fui demitida. Nunca sei. Foi uma conversa estranha. Só sei que em meia hora de papo eu falei que não gostava da política de tratamento em que o dono da empresa batia com os pulsos na mesa dos funcionários e tinha rompantes de ódio em frente a todos, e fui rebatida com a conclusão de que eu “não estava pronta para assumir um ambiente rápido e competitivo” de agência de publicidade. Então, em meia hora eu estava sem emprego e sem casa – já que eu estava morando em um flat bacanudo, perto da Paulista, financiado pela empresa. Juntei minhas duas malas e fui para a rua. Com cem reais no bolso.

São Paulo era cruel.

Mas eu não queria ir embora.

A ajuda veio de fora. Um amigo que eu tinha feito na ex-empresa – ele já batia quatro anos de São Paulo nas costas, vindo lá de Feira de Santana na Bahia – me arranjou um teto. E lá fui eu de volta para o centro da cidade. Uma mocinha baixinha e linda, jornalista, me aceitou de coração aberto em seu apartamento, sabendo que eu não tinha onde cair morta. Ela era do ABC Paulista, de família chilena, e muito rápido me mostrou que SP tinha dessas. Altos e baixos. Mas o amor poderia estar nos aguardando ali na esquina, era só saber onde procurar. (Verdade, em uma semana eu já tinha um novo emprego, sem indicação nenhuma).

O centro de São Paulo é um mundo paralelo. Incontáveis vezes que eu ouvia avisos sobre a periculosidade do lugar. Mas tudo o que eu enxergava era a miséria e a dignidade lutando uma eterna batalha no semblante de cada mendigo que me pedia um cigarro, enquanto eu andava embriagada pela av.São João – voltando a pé da balada. Sim, a pé. Muito cedo você aprende que é seguro andar onde supostamente nada é seguro. E foi ali, nas ruas das putas, que eu me sentia a vontade para ir para minha casa. E dava boa noite para todo mundo.

Uma vez pedi uma pizza. O motoboy gritou pelo interfone “desce logo porque isso aqui parace Resident Evil”. Era verdade, muita gente vagava pela minha rua nos intervalos entre conseguir um trocado para comprar uma pedrinha de crack, e a fissura. Se eu tinha medo? Tinha. Mas não era daquelas pessoas. Eu tinha medo da polícia, que os enxotava de rua em rua, conforme algum comerciante reclamava.

O Centro de São Paulo é lindo, mas é por entre as ruelas sujas que a gente pode enxergar o que é podre dentro da cidade. Não, não são aquelas pessoinhas. É o seu silêncio.

Elas não estão no jornal. Não de verdade, como pessoas que são.

O centro de São Paulo é o coração de cidade mais cheio de corações partidos que já vi.

O eterno Natal-Luz

“As sereias não têm lágrimas e sofrem muito mais que nós”.

Hans Christian Andersen

em Contos de fadas em suas versões originais: volume 1

Vivendo a uma quadra da av.Paulista eu tive meu eterno Natal-Luz particular. Dias em que eu saia de casa meio de pijama, meio vestida, e já estava na avenida mais famosa do país. Aquela continuidade de blocos de cimento, tão bem projetados que nunca contiveram a água da mais ínfima chuva, permitiam que skatistas passasem zunindo a um triz do meu corpo na calçada. Tudo era lindo, brilhante, e perfeito. As pessoas passavam com os cabelos coloridos, spikes, homens andando de mãos dadas com homens, garotas se beijando sem serem importunadas, velhinhas com camiseta dos Ramones. Livrarias gigantescas e cheias de gente. Prédios gigantes, um amontoado geométrico, um grafite aqui, outro ali. A Paulista era como uma meca para uma recém-chegada na cidade. Porque você nunca vive tempo suficiente em São Paulo para deixar de se sentir sempre surpresa.

Até o dia em que uma lâmpada fluorescente foi quebrada, separando dois daqueles homens que andavam de mãos dadas por cima dos blocos de cimento. Minha meca tinha tinha tanto ódio quanto amor passando por baixo das luzes que nunca apagavam.

Babilônia.

O caos

“Eu vo-lo digo: é preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela cintilante”.

Friedrich Nietzsche

em Assim falou Zatustra

Lá estava eu, latino americana sem dinheiro no bolso, com dois gatos no colo e mais uma mudança atrás de mim. Seu Otávio Do Frete já sabia quando eu ligava “Pode vir buscar minhas coisas aqui? Sim, no mesmo apartamento que você me deixou há oito meses atrás, perto da padaria Bela Paulista”. Lá vinha ele e o filho, para me ajudar na batalha contra a especulação imobiliária. Ah, se aquela caminhonete falasse. De galho em galho, de repente eu estava no meio do Banco Imobiliário. Os gatos foram para Vila Madalena e eu fiquei na av.Rebouças. Tempos sombrios.

Dois meses depois eu ligava chorando para uma amiga. Tentei vender meus poucos pertences, mas ao invés disso, o que eu vendi foi a minha vergonha em pedir ajuda. A resposta veio em forma de auxílio inesperado. Uma quantia de dinheiro que surgiu na minha conta no banco, não sei de onde e nem de quem. Uns dias depois chega uma cartinha no meu correio “Pode pagar de volta quando puder. Aproveite”. Logo depois, uma mensagem, de outra amiga; “Estou mudando para o Rio, pode ficar na minha casa até vencer o contrato. Dividimos o aluguel enquanto isso, sem problemas”.

Então existia amor em SP. Veja só.

“Alô? Seu Otávio?”…

Navegar é preciso

“Ninguém se comportava de maneira normal. Estavam todos sob o feitiço de seu infortúnio”.

Chimamanda Ngozi Adichie

em Americanah

Morei um semestre inteiro com meus gatos, sozinha, em uma casinha pequena na Vila Gumercindo. Pouco se ouve falar de lá, mas muito se escuta lá do lado da pontezinha, muitos carros, muitos motéis, muita gente trabalhadora e simples. Eu descia do metrô as quatro da manhã, e não havia ruas de puta por onde andar. No lugar disso, havia a única rua do caminho: a do lixão. De um lado aquele terreno gigante, onde despejavam boa parte do lixo da cidade, de outro, torres altíssimas por onde você só entrava de carro. Foi por ali que eu senti o verdadeiro cheiro de São Paulo. Um fedor descomunal. Descia do metrô, tampava o nariz com um xale, e corria até chegar na ponte que havia perto da minha casa. Corria, porque não sabia o que poderia surgir ali daquele terreno apinhado de lixo. Tinha medo, mas não deixava de sair por causa disso. Foi um aprendizado. Minha amiga que me cedeu a casinha vinha de vez em quando passar o final de semana, e um dia ela me disse “Todo mundo diz que a gente não pode andar na rua escura de noite sozinha, mas ninguém nos ensina o que devemos fazer caso não tenhamos outra opção”. Me marcou para sempre. Viver cercada de feministas é um bálsamo para qualquer mulher – deixamos de estar sozinhas. Foi na Vila Gumercindo que aprendi a correr de saltos. Mas acho que foi ali que, pela primeira vez, me senti plena e dona de mim. Completa.

A redenção madalena

“Os mecanismos que o homem moderno desencandeia para minimizar ou suprimir seu desenraizamento e para responder as solicitações da vida metropolitana […] são algumas atitudes e comportamentos típicos do sujeito da metrópole”.

Fernanda Cristina Marquetti

em O Suicídio como Espetáculo na Metrópole

Terminado mais um contrato de aluguel, com a vida melhor, parti de mala e cuia de novo. Para Vila Madalena. Com seu Otávio sempre na retaguarda.

Na Vila eu fui feliz.

A despeito da copa do mundo ter despejado litros de mijo pelas ruas de nome feliz, a revolução coxinha nos bares badalados e todas as “finas” que tiraram da minha bicicleta. Lá estavam meus amigos, meu próprio escritório, e a possibilidade de ter tudo muito perto. A arte, as praças, os restaurantes, os supermercados. Os preços variados. Tudo ali.

O melhor sofá do mundo

“Muito fácil amar incondicionalmente estranhos de passagem. Eles não exigem nada de você. É muito difícil amar incondicionalmente as pessoas quando elas podem ferir você”.

Amanda Palmer

em A Arte de Pedir

Eu e o namorado tínhamos um desejo em comum: possuir o sofá mais gostoso do mundo na nossa sala. Semanas e semanas procuramos com carinho; e encontramos. Caro, mas valeria a pena. Para durar a vida inteira. Demorou muitos dias para chegar, mas nós permanecemos convictos de que tudo valeria a pena por aquele sofá. Impermeabilizado, com tecido anti-gatos, cinza, gigante, fofo porém firme. É a coisa mais gostosa que já possui na vida, em bens materiais. Um dia um dos gatos descobriu que não podia afiar as unhas ali, mas podia meter as patinhas por entre a costura de um dos braços e rasgar a linha que unia os tecidos. Nos dois lados do sofá.

Tudo bem, a gente pensou. O sofá continua lindo e são só dois pequenos rasgõezinhos, um dia a gente conserta. Fomos um ano felizes com o sofá. Então decidimos mudar para a Suécia. E vender tudo o que tinha dentro da casa. Inclusive o sofá.

Em São Paulo o cara que conserta o sofá não é o estofador, é o tapeceiro. Chamei o tapeceiro para arrumar o sofá. O orçamento foi muito maior do que eu esperava, e ele replicou “Mas dona, tudo nessa cidade é caro, tô há doze anos trabalhando na Vila Madalena, faz tempo que quero fazer um site para a tapeçaria, mas é sempre muito caro”. Bingo. Eu vivo de fazer sites. Propus uma troca de serviços e deu certo.

Existe amor em SP.

Sentamos, eu e o tapeceiro, para conversarmos sobre o que ele queria colocar no site. Eu disse que faria umas fotos dele trabalhando e ele retrucou. Indaguei o motivo pelo qual ele não queria que tivesse fotos dele no site. Ele me respondeu secamente “Porque eu sou preto”.

Eu não soube o que dizer. Foi como um pequeno choque no meio do meu dia atolado de coisas para resolver sobre a mudança. Fiquei muda, mas ele não. Me contou de cada prédio da minha rua onde ele sofreu racismo, me apontou as janelas dos apartamentos.

Não existe assim tanto amor em SP.

Os limites

“Afundei no banco de veludo cinza e fechei meus olhos. O ar da redoma me comprimia, e eu não conseguia me mover.”

Sylvia Plath

em A redoma de vidro

Nunca conheci a zona leste de verdade. Nem a zona sul. Nem a norte. Do oeste, fui só até a Lapa. Sinto que meus quase cinco anos na metrópole se passaram dentro de uma grande bolha social. Me entreguei ao coração pulsante da cidade e fiquei por ali, no que eles chamam de Centro Expandido. Sinto vontade de explorar, mas não há mais tempo.

Às vezes parece que sufoquei em uma São Paulo que não passa no Datena. Mas tudo bem. Um dia eu volto e estouro a bolha.

São Paulo

“Fofura em um instante, entranhas no outro”.

Stephen King

em Celular

Uma cidade grande é uma cidade grande. Você nunca sabe o que pode encontrar na próxima rua. Mas é bom ter um seu Otávio na retaguarda. Roommates que estão ali com você na guerra do dia a dia. Bicicletas que te ajudam a driblar um mar de carros. Amigos que te ensinam a consertar bicicletas, e seu coração partido.

Hoje o Largo da Batata não é mais areia, trânsito e gente. Virou um grande largo de cimento, onde as pessoas plantaram flores, fizeram bancos, e promovem shows. As ruas não são mais tão hostis para pedalar, as ciclofaixas estão surgindo aos trancos e barrancos, como o melhor reconhecimento oficial de que o ciclista é parte da cidade, mesmo com todos os problemas. O centro tem grupos de resistência e auxílio que estão tentando tornar aquelas pessoas, bem, pessoas. A especulação imobiliária encontra uma barricada de gente que não tem medo de pôr a cara na rua para resistir, é só olhar os últimos movimentos.

Vou embora de São Paulo com a sensação de ter participado de coisas grandiosas. Mesmo que eu fosse só mais uma ali na multidão bovina na estação de metrô.

Deixo a cidade em plena transformação.

São Paulo, a cidade onde chove na rua enquanto a torneira de casa seca.

No fim das contas, quem recebeu mais nesse nosso relacionamento fui eu.

Virei gente.