Não olhe para mim, eu posso chorar

E essa semana chorei tanto que entendi como Obirici pariu um rio com as próprias lágrimas. Chorei de tristeza sozinha, saudade de uma coisinha aqui, uma coisinha ali, o rombo que faz  a ausência de um continente inteiro, do outro lado do oceano. Tristeza é maré de água salgada nos olhos, e essa maré arrebentou todos os dias dessa semana no escuro da minha pequena solidão. Mas nem por um segundo senti pena de mim mesma, pois era o pranto de uma tristeza minha, só minha, e eu não queria compartilha-la com mais ninguém. 
Às vezes converso comigo mesma nesses dias de fossa, aos soluços, porque é essa tristeza que me esfrega no rosto a condição em que todos nos encontramos esse ano (e todos os outros). E me lembra que somos tão sociais, mas tão sociais, que até sozinhos sofremos juntos. Tenho certeza que eu não era a única pessoa do mundo chorando no escuro essa semana. E essa amargura que vem me consumindo é contemplar um futuro próximo sem as expectativas do que me mantinha na linha antes — e eu nem sabia.

No início desse ano, quando tomamos conhecimento da pandemia, muita gente começou um diário de quarentena. Algo me empapuça a garganta só de lembrar das ideias que fomos construindo artisticamente para o futuro naqueles primeiros dias. Eu sabia que sairia desse período difícil transformada, mas o que eu não esperava era já me ver transformada aqui, agora, muito antes desse pesadelo ter acabado. E mesmo que todos os humanos sejam mais ou menos tristes em diferentes momentos da vida, cada tristeza é única, incomparável.

Eu nunca tinha conhecido pessoalmente alguém que tivesse ido a outro país até ali pelos meus 14 anos. Foi quando uma amiga, que conheci em um antigo fórum de internet, me contou que iria para Itália fazer intercâmbio. Eu fiquei imaginando como seria pisar em outro continente, respirar o ar de um lugar tão distante, tocar em árvores que nasceram naquela terra tão longe da minha. Pensava na existência de outros países como quem concebe mundos criados nos livros, tão distantes eles eram da minha realidade quanto os quilômetros reais que nos separavam. Para mim, a Grécia e o Reino Unido figuravam no mesmo local do mundo das ideias onde ficava Terra Média e Nárnia. Jamais imaginei que eu teria a chance de eu mesma visitá-los um dia, com essa pele e essa cara que me carregam pelo mundo desde que nasci. Agora já são mais de cinco anos que esse corpo aqui habita terras de outro continente. E finalmente percebo aquilo que me sustentava navegando a maré da saudade esses anos todos. Sei o que me embalou no mar revolto das dificuldades em ser permanentemente uma estrangeira – qualidade que me destaca desde Porto Alegre, minha terra natal, onde há muito tempo eu sou a estranha que mudou pra São Paulo, em São Paulo, onde cheguei gaúcha e fui embora como a amiga que mudou para a Suécia, na Suécia, sou a brasileira louca que mora no frio. A expectativa da visita ao Brasil tem me sustentado firme nesses anos longe. Durante os meses que separam o momento de cruzar o oceano Atlântico, a data da partida vira um selo mágico. A passagem de avião, o destino a felicidade. 

A pandemia me tirou essa data, me arrancou as expectativas concretas dessa visita que tanto me nutre. Começo a perceber que pisar no Brasil é a confirmação brutal de que ele existe. De tanto tempo morando aqui no velho continente, me apego às memórias de lá como quem corre atrás do chinelo preso na beira da praia, antes que o mar carregue pra longe, para sempre. Aos poucos, minha terra vai tomando esse lugar de mito, esse espaço mágico onde o chão e o ar são diferentes de todos os outros lugares do planeta. Porque cada lugar é único, cada água de rio se ajusta à forma do terreno e ao desenho da beira que a limita; mas é o terreno que muda com a corrente de água com o passar dos anos. 

Choro de saudade da minha terra, daqueles que um dia abracei e até mesmo daqueles que nunca sequer vi ao vivo, mas que já são capazes de abrir mais ainda esse rombo no meu peito. Luto contra essa sensação de que o Brasil vai tomando um lugar vago ao lado dos lugares que povoam minhas fantasias. O Brasil é real; ele precisa ser real. Porque eu sou real.

E eu hoje anseio pela tempestade, daquela que molha o corpo da cabeça aos pés em dois segundos, o temporal que lava tudo, tudo. A própria renovação. 

Meus soluços chovem umas dores que são só minhas. Tão minhas que não quero dividi-las com ninguém mais.  


Crédito das imagens: Todas as artes desse post são obras da artista Albane Simon.

Esse post faz parte da blogagem coletiva da #EstacaoBlogagem. O tema dessa semana foi o naipes de Copas do tarot.

Rainha de ouro

Me brutalizava profundamente a ideia de que minha tia estava fundida às paredes da casa. As tábuas do assoalho rangiam o dia inteiro sob os pés de todos nós, os que iam e vinham, enquanto ela permanecia selada ao universo que se desenrolava entre as paredes de tinta lascada, aqueles retratos de nossos antepassados perdidos aqui e ali, como estrelas anônimas em um céu meio nublado. Foi com ela que aprendi o valor de uma boa história. E que um quilo de farinha com água e sal alimenta uma família de cinco por um dia inteiro. 

A mais velha de doze irmãos. As histórias da minha tia eram o ouro das visitas de domingo, eu me deslumbrava no poder da mulher que narrava a própria vida. O teto da casa se apoiava na voz dela. O fogão a lenha era seu pajem. E nós éramos só um bando de corpos feitos da mesma matéria, tios e primos, atraídos pela força que o corpo dela, e só dela, exercia sobre os nossos. Reunidos na cozinha, de onde ela orquestrava sobre a vida de todos. Abraço e abença.

O dinheiro dos outros habitantes da casa paravam nela e dela se redistribuíam para prover futuro e segurança a todo mundo que batia à sua porta. Sua magia escorria para além do conforto; em sua rigidez, ela provia certezas. Me causava fascínios e muitas perguntas, mas eu gostava mais de ouvir e observar para ver como a vida se desenrolava para fora daquela mulher, filha do mesmo pai e da mesma mãe de minha mãe. Se eu pertencia a minha mãe por razões de sangue, também pertencia àquela mulher. Eu queria pertencer àquela mulher. 

Eu era só uma criança quando costurei essa malha ao redor de minha tia, preenchendo lacunas em seu comportamento naqueles espaços que não batiam com a vida dos outros adultos que eu conhecia – o movimento dos corpos que estavam sempre indo ou vindo de algum lugar, permanentemente buscando coisas, trazendo compras, indo trabalhar. Até quem não trabalhava  trabalhava; havia filas de banco para serem preenchidas, lotéricas a serem visitadas, ingredientes a serem comprados na conta do caderninho do mercado. E quando a tia precisava de algo do mundo lá fora, era sempre um outro alguém que ia buscar; pois para ela só podíamos, todos nós, ceder a magia do sim. Sempre. E eu crescia, as plantas cresciam, os cães pariam outros cães, os ovos chocavam e minha tia permanecia confinada à casa, como se lá tivesse nascido, morrido, vivido, tudo de uma vez, em um único ano, e nós todos estivéssemos voltando para lá sempre no mesmo domingo, repetidamente. 

A tia era a figura da casa dela e de todas as outras também, o puro símbolo do acolhimento. Era para lá que todos os adolescentes da rua iam quando aprontavam uma e sabiam que a surra de vara os aguardava em seus lares. Era para lá que eu, do fundo do meu coração, sabia que poderia ir a qualquer hora do dia e da noite, sob qualquer circunstância, e seria recebida com alegria e um pão com manteiga num pires de vidro marrom.

Nunca vi minha tia fora de casa. Nem depois de adulta. Meus ossos mudaram minha face, minha altura, o número do meu sapato; os ossos da tia permaneceram encurtados nos dedos do mesmo jeito de sempre, onde ela amassa a massa de pão. Mais alta, eu pude vê-la também de outros ângulos. No topo da cabeça, de repente havia fios brancos. 

Pelos seus braços passam todos os quase dez bebês que a família produz a cada ano. E as rugas nos cantos de sua boca se acomodam com conforto nos últimos domingos em que lá estive. As tristezas que ocasionalmente lavam seus olhos sempre vem lá de fora. O universo das paredes é o intocado lar de uma mãe, mãe das mães. 

Minha tia que nunca teve nada dela, exclusivamente dela, que me botou na cabeça a ideia de que a felicidade é um sabor que a gente degusta aqui e agora, com o que temos nas mãos; enche a barriga e agradece esse momento. 

Rainha do ouro da memória, do presente. Nós somos o que somos porque nas paredes da tia, pertencemos. 

Abença, tia.

{Esse texto faz parte da iniciativa de blogagem coletiva Estação Blogagem. O tema da vez era o conjunto de Ouro dos arcanos menores do tarô.}