Me brutalizava profundamente a ideia de que minha tia estava fundida às paredes da casa. As tábuas do assoalho rangiam o dia inteiro sob os pés de todos nós, os que iam e vinham, enquanto ela permanecia selada ao universo que se desenrolava entre as paredes de tinta lascada, aqueles retratos de nossos antepassados perdidos aqui e ali, como estrelas anônimas em um céu meio nublado. Foi com ela que aprendi o valor de uma boa história. E que um quilo de farinha com água e sal alimenta uma família de cinco por um dia inteiro.
A mais velha de doze irmãos. As histórias da minha tia eram o ouro das visitas de domingo, eu me deslumbrava no poder da mulher que narrava a própria vida. O teto da casa se apoiava na voz dela. O fogão a lenha era seu pajem. E nós éramos só um bando de corpos feitos da mesma matéria, tios e primos, atraídos pela força que o corpo dela, e só dela, exercia sobre os nossos. Reunidos na cozinha, de onde ela orquestrava sobre a vida de todos. Abraço e abença.
O dinheiro dos outros habitantes da casa paravam nela e dela se redistribuíam para prover futuro e segurança a todo mundo que batia à sua porta. Sua magia escorria para além do conforto; em sua rigidez, ela provia certezas. Me causava fascínios e muitas perguntas, mas eu gostava mais de ouvir e observar para ver como a vida se desenrolava para fora daquela mulher, filha do mesmo pai e da mesma mãe de minha mãe. Se eu pertencia a minha mãe por razões de sangue, também pertencia àquela mulher. Eu queria pertencer àquela mulher.
Eu era só uma criança quando costurei essa malha ao redor de minha tia, preenchendo lacunas em seu comportamento naqueles espaços que não batiam com a vida dos outros adultos que eu conhecia – o movimento dos corpos que estavam sempre indo ou vindo de algum lugar, permanentemente buscando coisas, trazendo compras, indo trabalhar. Até quem não trabalhava trabalhava; havia filas de banco para serem preenchidas, lotéricas a serem visitadas, ingredientes a serem comprados na conta do caderninho do mercado. E quando a tia precisava de algo do mundo lá fora, era sempre um outro alguém que ia buscar; pois para ela só podíamos, todos nós, ceder a magia do sim. Sempre. E eu crescia, as plantas cresciam, os cães pariam outros cães, os ovos chocavam e minha tia permanecia confinada à casa, como se lá tivesse nascido, morrido, vivido, tudo de uma vez, em um único ano, e nós todos estivéssemos voltando para lá sempre no mesmo domingo, repetidamente.
A tia era a figura da casa dela e de todas as outras também, o puro símbolo do acolhimento. Era para lá que todos os adolescentes da rua iam quando aprontavam uma e sabiam que a surra de vara os aguardava em seus lares. Era para lá que eu, do fundo do meu coração, sabia que poderia ir a qualquer hora do dia e da noite, sob qualquer circunstância, e seria recebida com alegria e um pão com manteiga num pires de vidro marrom.
Nunca vi minha tia fora de casa. Nem depois de adulta. Meus ossos mudaram minha face, minha altura, o número do meu sapato; os ossos da tia permaneceram encurtados nos dedos do mesmo jeito de sempre, onde ela amassa a massa de pão. Mais alta, eu pude vê-la também de outros ângulos. No topo da cabeça, de repente havia fios brancos.
Pelos seus braços passam todos os quase dez bebês que a família produz a cada ano. E as rugas nos cantos de sua boca se acomodam com conforto nos últimos domingos em que lá estive. As tristezas que ocasionalmente lavam seus olhos sempre vem lá de fora. O universo das paredes é o intocado lar de uma mãe, mãe das mães.
Minha tia que nunca teve nada dela, exclusivamente dela, que me botou na cabeça a ideia de que a felicidade é um sabor que a gente degusta aqui e agora, com o que temos nas mãos; enche a barriga e agradece esse momento.
Rainha do ouro da memória, do presente. Nós somos o que somos porque nas paredes da tia, pertencemos.
Abença, tia.

{Esse texto faz parte da iniciativa de blogagem coletiva Estação Blogagem. O tema da vez era o conjunto de Ouro dos arcanos menores do tarô.}