Originalmente escrito no meu antigo blog Lagom Rocks, em 2015.
É uma carta para minha irmã mais nova.
Mana,
Quando eu tinha a tua idade cultivei sonhos que nunca se concretizaram. Mas tudo bem, porque eu não os quero mais. Ia começar essa carta te contando que a gente é infantil em vários níveis, mas depois a gente cresce. Só que eu ainda não cresci tanto assim também. Por exemplo: ontem eu decidi que não confio em quem não gosta de Clarice Lispector. Se for uma pessoa nova, eu perdôo. Se for uma pessoa pouco familiarizada com literatura também. Mas só isso. Li dois livros ontem, um dela e outro de uma moça que tem a minha idade e escreve sobre fadas. E conclui que: tem gente que é boa, e tem gente que é gênio. Paciência. (Tem gente que escreve sobre Londres e gente que ensina a viver. Há de se separar o joio do trigo).
Houve um tempo em que eu ficava no muro e achava lindo. Eu tinha 18 anos. Tratar tudo com parcimônia, manipular o ar e deixar todos confortáveis com a minha presença. Mamãe me ensinou: seja sempre agradável. Com o porteiro do prédio até o dono da empresa. Com o cachorro da vizinha até o prefeito da cidade. Ninguém disse que não dava para ser amavelmente escrota. Até eu descobrir sozinha – levando muita porrada. A vida é assim.
Gastei uma dúzia de anos no esforço para ser uma fada. Bonita, bondosa, inteligente. Esperei pacientemente que as asas brotassem no meu corpo imaculado. Me disseram que se eu fosse dócil o suficiente, tivesse amigos que bastassem e talento que se sobresaísse, tudo daria certo. Um dia mandei a fatura para o universo me pagar. Recebi de volta uma carreira em um mundo machista, um relógio de pulso da Betty Boop arrebentado por um namorado violento, três empregos frustrantes um atrás do outro e uns segredos para enterrar.
Mas: eu tinha um fogo. Uma vozinha sarcástica e raivosa que dizia VOCÊ NÃO SABE DE NADA. E eu não sabia mesmo. Aprendi pelo caminho. Mandei meus açucares “para as cucuias” – como diria nossa mãe. Fui ter comigo mesma para saber o que eu queria.
E eu não fazia a mínima idéia, claro.
É assim que a gente solta o nosso veneno no mundo, ou pega o demônio pelos chifres. E doma. Capture o animal vivo, traga junto do seu corpo e rasgue o couro à unha. Vai ser horrível. Não importa. O demônio precisa sangrar e você precisa viver. Mamãe e papai tinham orgulho – de mim, não da minha besta – mas nem eles sabiam direito onde aquela velha casca de docilidade iria me levar. Provavelmente no máximo a vinte quilômetros de distância, uma casa, um jardim, um berço, um chimarrão e férias-prêmio. Mas o demônio sangrava embaixo do couro. Ele precisava sair, e a casca tinha que quebrar.
Com quantos paus se faz uma canoa? Com quantos feridos se forma uma tragédia?
Eu sentia um chamado distante, um cheiro de presas novas – por isso parti. Para correr com outras bestas, fazer a matilha das lobas. Meu destino nunca foi ser fada.
Meu coração é selvagem.
O que eu queria te dizer, mana, é que às vezes dói estar longe. E que eu queria te dizer que tu também tens um demônio aí dentro. Deixa ele sair. Existem apenas dois perigos para quem tem 18 anos: estar confusa demais ou ter certeza demais. Deixa a tua roda da fortuna girar e lembra sempre que eu estou aqui, correndo com as lobas pela Terra, que o mundo é cíclico, e que quando eu passar por aí é só se juntar ao bando.
Ou pedir ajuda pelo Skype.
Conte sempre com as lobas.