Originalmente publicado no meu antigo blog Lagom Rocks, em maio de 2015, enquanto me preparava para mudar do Brasil para a Suécia
Esse texto era um manifesto de carinho pela Vila Madalena, mas virou um manifesto de amor por São Paulo – da Vila, pouco falei. Ainda que exista todo um lirismo em caminhar com passos metrificados por ruas chamadas Girassol, Fidalga, Harmonia, Purpurina. Uma sensação de estar em um lugar onde a cada esquina podemos encontrar uma poeta. Nas ruas da Vila Madalena, que nem são tão estreitas assim, aproximei meu carinho por uma São Paulo privilegiada nos últimos anos. Financeira e artisticamente. Quando pisei no chão úmido da cidade, de mala e cuia (literalmente, gaúcha que sou), fui acolhida na casa de uma amiga no Alto de Pinheiros, tão próximo e tão longe da Vila – onde eu trabalhava. Tomava cerca de dois ônibus para chegar ao escritório, e pouco sabia sobre os bairros por onde eu passava. Largo da Batata era onde eu descia do primeiro ônibus, e que de batata não tinha nada: era só areia vermelha, gente, trânsito e obras. Queria mesmo era morar na Paulista, com todas aquelas luzes que faziam eu pensar que viveria para sempre em um eterno Natal. Não demorou muito para que isso acontecesse, e em algumas semanas eu estava acomodada por lá. Não sem antes passar uma temporada de dez dias no centro da cidade, no décimo terceiro andar de um edifício cercado pela Cracolândia – que prefiro chamar de Desesperançolândia.
O amor em SP
“[…] a leveza do pensamento pode fazer a frivolidade parecer pesada e opaca”.
Ítalo Calvino
em Seis propostas para o próximo milênio
Vim para São Paulo com essa promessa de um trabalho melhor, mas a grande verdade é que encontrei uma corrida louca para ver quem ficava mais horas trabalhando além do expediente. Muito rápido eu entendi porque todo mundo chegava depois das 10. E nem tão rápido assim, eu descobri o que era O Rodízio. Ouvia as pessoas cochichando pelos corredores sobre o tal O Rodízio e não entendia o que era aquela comoção de ajustes de horários. Tinha vergonha de perguntar o que era e parecer muito caipira (logo eu, que vinha de outra capital). Um avisava o outro que estaria n’O Rodízio no dia seguinte, e todos se apressavam para ajustar horários de reunião e de almoço. Logo imaginei que O Rodízio era um complexo sistema de caronas que as pessoas prestavam umas às outras, para evitar entulhar ainda mais a cidade com carros. Ledo engano. O Rodízio nada mais era do que uma sequência de números – ou letras, nunca sei – de placas de carros que não poderiam circular em determinados horários pela cidade, com a pena de serem multados, e mudava todos os dias. No final, eu não estava tão errada, O Rodízio era só algo que ajudava a cidade a reduzir o número de carros no horário de pico. E logo descobri que muitas pessoas tinham mais de um carro para poder burlar o rodízio. Minha visão romantizada de ajuda mútua entre as pessoas se desvaneceu.
O centro
“A questão da hierarquia sempre foi da mais profunda importância em tempos de guerra, não só pela disciplina militar, mas também no momento da derrota, o homem pensa fechando o livro: alguém tem de sofrer a queda”.
Fábio Fernandes
no conto Os alferes de ferro
em Vapor punk: novos documentos de uma pitoresca época steampunk
Pedi demissão. Ou fui demitida. Nunca sei. Foi uma conversa estranha. Só sei que em meia hora de papo eu falei que não gostava da política de tratamento em que o dono da empresa batia com os pulsos na mesa dos funcionários e tinha rompantes de ódio em frente a todos, e fui rebatida com a conclusão de que eu “não estava pronta para assumir um ambiente rápido e competitivo” de agência de publicidade. Então, em meia hora eu estava sem emprego e sem casa – já que eu estava morando em um flat bacanudo, perto da Paulista, financiado pela empresa. Juntei minhas duas malas e fui para a rua. Com cem reais no bolso.
São Paulo era cruel.
Mas eu não queria ir embora.
A ajuda veio de fora. Um amigo que eu tinha feito na ex-empresa – ele já batia quatro anos de São Paulo nas costas, vindo lá de Feira de Santana na Bahia – me arranjou um teto. E lá fui eu de volta para o centro da cidade. Uma mocinha baixinha e linda, jornalista, me aceitou de coração aberto em seu apartamento, sabendo que eu não tinha onde cair morta. Ela era do ABC Paulista, de família chilena, e muito rápido me mostrou que SP tinha dessas. Altos e baixos. Mas o amor poderia estar nos aguardando ali na esquina, era só saber onde procurar. (Verdade, em uma semana eu já tinha um novo emprego, sem indicação nenhuma).
O centro de São Paulo é um mundo paralelo. Incontáveis vezes que eu ouvia avisos sobre a periculosidade do lugar. Mas tudo o que eu enxergava era a miséria e a dignidade lutando uma eterna batalha no semblante de cada mendigo que me pedia um cigarro, enquanto eu andava embriagada pela av.São João – voltando a pé da balada. Sim, a pé. Muito cedo você aprende que é seguro andar onde supostamente nada é seguro. E foi ali, nas ruas das putas, que eu me sentia a vontade para ir para minha casa. E dava boa noite para todo mundo.
Uma vez pedi uma pizza. O motoboy gritou pelo interfone “desce logo porque isso aqui parace Resident Evil”. Era verdade, muita gente vagava pela minha rua nos intervalos entre conseguir um trocado para comprar uma pedrinha de crack, e a fissura. Se eu tinha medo? Tinha. Mas não era daquelas pessoas. Eu tinha medo da polícia, que os enxotava de rua em rua, conforme algum comerciante reclamava.
O Centro de São Paulo é lindo, mas é por entre as ruelas sujas que a gente pode enxergar o que é podre dentro da cidade. Não, não são aquelas pessoinhas. É o seu silêncio.
Elas não estão no jornal. Não de verdade, como pessoas que são.
O centro de São Paulo é o coração de cidade mais cheio de corações partidos que já vi.
O eterno Natal-Luz
“As sereias não têm lágrimas e sofrem muito mais que nós”.
Hans Christian Andersen
em Contos de fadas em suas versões originais: volume 1
Vivendo a uma quadra da av.Paulista eu tive meu eterno Natal-Luz particular. Dias em que eu saia de casa meio de pijama, meio vestida, e já estava na avenida mais famosa do país. Aquela continuidade de blocos de cimento, tão bem projetados que nunca contiveram a água da mais ínfima chuva, permitiam que skatistas passasem zunindo a um triz do meu corpo na calçada. Tudo era lindo, brilhante, e perfeito. As pessoas passavam com os cabelos coloridos, spikes, homens andando de mãos dadas com homens, garotas se beijando sem serem importunadas, velhinhas com camiseta dos Ramones. Livrarias gigantescas e cheias de gente. Prédios gigantes, um amontoado geométrico, um grafite aqui, outro ali. A Paulista era como uma meca para uma recém-chegada na cidade. Porque você nunca vive tempo suficiente em São Paulo para deixar de se sentir sempre surpresa.
Até o dia em que uma lâmpada fluorescente foi quebrada, separando dois daqueles homens que andavam de mãos dadas por cima dos blocos de cimento. Minha meca tinha tinha tanto ódio quanto amor passando por baixo das luzes que nunca apagavam.
Babilônia.
O caos
“Eu vo-lo digo: é preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela cintilante”.
Friedrich Nietzsche
em Assim falou Zatustra
Lá estava eu, latino americana sem dinheiro no bolso, com dois gatos no colo e mais uma mudança atrás de mim. Seu Otávio Do Frete já sabia quando eu ligava “Pode vir buscar minhas coisas aqui? Sim, no mesmo apartamento que você me deixou há oito meses atrás, perto da padaria Bela Paulista”. Lá vinha ele e o filho, para me ajudar na batalha contra a especulação imobiliária. Ah, se aquela caminhonete falasse. De galho em galho, de repente eu estava no meio do Banco Imobiliário. Os gatos foram para Vila Madalena e eu fiquei na av.Rebouças. Tempos sombrios.
Dois meses depois eu ligava chorando para uma amiga. Tentei vender meus poucos pertences, mas ao invés disso, o que eu vendi foi a minha vergonha em pedir ajuda. A resposta veio em forma de auxílio inesperado. Uma quantia de dinheiro que surgiu na minha conta no banco, não sei de onde e nem de quem. Uns dias depois chega uma cartinha no meu correio “Pode pagar de volta quando puder. Aproveite”. Logo depois, uma mensagem, de outra amiga; “Estou mudando para o Rio, pode ficar na minha casa até vencer o contrato. Dividimos o aluguel enquanto isso, sem problemas”.
Então existia amor em SP. Veja só.
“Alô? Seu Otávio?”…
Navegar é preciso
“Ninguém se comportava de maneira normal. Estavam todos sob o feitiço de seu infortúnio”.
Chimamanda Ngozi Adichie
em Americanah
Morei um semestre inteiro com meus gatos, sozinha, em uma casinha pequena na Vila Gumercindo. Pouco se ouve falar de lá, mas muito se escuta lá do lado da pontezinha, muitos carros, muitos motéis, muita gente trabalhadora e simples. Eu descia do metrô as quatro da manhã, e não havia ruas de puta por onde andar. No lugar disso, havia a única rua do caminho: a do lixão. De um lado aquele terreno gigante, onde despejavam boa parte do lixo da cidade, de outro, torres altíssimas por onde você só entrava de carro. Foi por ali que eu senti o verdadeiro cheiro de São Paulo. Um fedor descomunal. Descia do metrô, tampava o nariz com um xale, e corria até chegar na ponte que havia perto da minha casa. Corria, porque não sabia o que poderia surgir ali daquele terreno apinhado de lixo. Tinha medo, mas não deixava de sair por causa disso. Foi um aprendizado. Minha amiga que me cedeu a casinha vinha de vez em quando passar o final de semana, e um dia ela me disse “Todo mundo diz que a gente não pode andar na rua escura de noite sozinha, mas ninguém nos ensina o que devemos fazer caso não tenhamos outra opção”. Me marcou para sempre. Viver cercada de feministas é um bálsamo para qualquer mulher – deixamos de estar sozinhas. Foi na Vila Gumercindo que aprendi a correr de saltos. Mas acho que foi ali que, pela primeira vez, me senti plena e dona de mim. Completa.
A redenção madalena
“Os mecanismos que o homem moderno desencandeia para minimizar ou suprimir seu desenraizamento e para responder as solicitações da vida metropolitana […] são algumas atitudes e comportamentos típicos do sujeito da metrópole”.
Fernanda Cristina Marquetti
em O Suicídio como Espetáculo na Metrópole
Terminado mais um contrato de aluguel, com a vida melhor, parti de mala e cuia de novo. Para Vila Madalena. Com seu Otávio sempre na retaguarda.
Na Vila eu fui feliz.
A despeito da copa do mundo ter despejado litros de mijo pelas ruas de nome feliz, a revolução coxinha nos bares badalados e todas as “finas” que tiraram da minha bicicleta. Lá estavam meus amigos, meu próprio escritório, e a possibilidade de ter tudo muito perto. A arte, as praças, os restaurantes, os supermercados. Os preços variados. Tudo ali.
O melhor sofá do mundo
“Muito fácil amar incondicionalmente estranhos de passagem. Eles não exigem nada de você. É muito difícil amar incondicionalmente as pessoas quando elas podem ferir você”.
Amanda Palmer
em A Arte de Pedir
Eu e o namorado tínhamos um desejo em comum: possuir o sofá mais gostoso do mundo na nossa sala. Semanas e semanas procuramos com carinho; e encontramos. Caro, mas valeria a pena. Para durar a vida inteira. Demorou muitos dias para chegar, mas nós permanecemos convictos de que tudo valeria a pena por aquele sofá. Impermeabilizado, com tecido anti-gatos, cinza, gigante, fofo porém firme. É a coisa mais gostosa que já possui na vida, em bens materiais. Um dia um dos gatos descobriu que não podia afiar as unhas ali, mas podia meter as patinhas por entre a costura de um dos braços e rasgar a linha que unia os tecidos. Nos dois lados do sofá.
Tudo bem, a gente pensou. O sofá continua lindo e são só dois pequenos rasgõezinhos, um dia a gente conserta. Fomos um ano felizes com o sofá. Então decidimos mudar para a Suécia. E vender tudo o que tinha dentro da casa. Inclusive o sofá.
Em São Paulo o cara que conserta o sofá não é o estofador, é o tapeceiro. Chamei o tapeceiro para arrumar o sofá. O orçamento foi muito maior do que eu esperava, e ele replicou “Mas dona, tudo nessa cidade é caro, tô há doze anos trabalhando na Vila Madalena, faz tempo que quero fazer um site para a tapeçaria, mas é sempre muito caro”. Bingo. Eu vivo de fazer sites. Propus uma troca de serviços e deu certo.
Existe amor em SP.
Sentamos, eu e o tapeceiro, para conversarmos sobre o que ele queria colocar no site. Eu disse que faria umas fotos dele trabalhando e ele retrucou. Indaguei o motivo pelo qual ele não queria que tivesse fotos dele no site. Ele me respondeu secamente “Porque eu sou preto”.
Eu não soube o que dizer. Foi como um pequeno choque no meio do meu dia atolado de coisas para resolver sobre a mudança. Fiquei muda, mas ele não. Me contou de cada prédio da minha rua onde ele sofreu racismo, me apontou as janelas dos apartamentos.
Não existe assim tanto amor em SP.
Os limites
“Afundei no banco de veludo cinza e fechei meus olhos. O ar da redoma me comprimia, e eu não conseguia me mover.”
Sylvia Plath
em A redoma de vidro
Nunca conheci a zona leste de verdade. Nem a zona sul. Nem a norte. Do oeste, fui só até a Lapa. Sinto que meus quase cinco anos na metrópole se passaram dentro de uma grande bolha social. Me entreguei ao coração pulsante da cidade e fiquei por ali, no que eles chamam de Centro Expandido. Sinto vontade de explorar, mas não há mais tempo.
Às vezes parece que sufoquei em uma São Paulo que não passa no Datena. Mas tudo bem. Um dia eu volto e estouro a bolha.
São Paulo
“Fofura em um instante, entranhas no outro”.
Stephen King
em Celular
Uma cidade grande é uma cidade grande. Você nunca sabe o que pode encontrar na próxima rua. Mas é bom ter um seu Otávio na retaguarda. Roommates que estão ali com você na guerra do dia a dia. Bicicletas que te ajudam a driblar um mar de carros. Amigos que te ensinam a consertar bicicletas, e seu coração partido.
Hoje o Largo da Batata não é mais areia, trânsito e gente. Virou um grande largo de cimento, onde as pessoas plantaram flores, fizeram bancos, e promovem shows. As ruas não são mais tão hostis para pedalar, as ciclofaixas estão surgindo aos trancos e barrancos, como o melhor reconhecimento oficial de que o ciclista é parte da cidade, mesmo com todos os problemas. O centro tem grupos de resistência e auxílio que estão tentando tornar aquelas pessoas, bem, pessoas. A especulação imobiliária encontra uma barricada de gente que não tem medo de pôr a cara na rua para resistir, é só olhar os últimos movimentos.
Vou embora de São Paulo com a sensação de ter participado de coisas grandiosas. Mesmo que eu fosse só mais uma ali na multidão bovina na estação de metrô.
Deixo a cidade em plena transformação.
São Paulo, a cidade onde chove na rua enquanto a torneira de casa seca.
No fim das contas, quem recebeu mais nesse nosso relacionamento fui eu.
Virei gente.