Viajar para uma terra diferente, com estrangeiros de um outro lugar mais diferente que o primeiro. Ainda me parecia uma transgressão idiomática enquanto eu voava para Paris num avião cheio de vikings. Os ossos de ouvir os barulhos dessa língua filha da puta – que às vezes entendo, outras me perco. Sueco chega nos meus ouvidos como um vagão de montanha russa trafega até o final da linha: altos e baixos, às vezes ruidoso, às vezes mudo. Tem aqueles picos em que entendo uma frase inteira, mas depois despenco em uma confusão de fonemas cujo significado me escapa como um grito engasgado no loop. Pois eu estava ali no avião com aquela gente, usando o meu conhecimento surrado de francês com a tripulação da Air France, tentando justificar os seis anos aprendendo essa que deve ser uma das línguas francas que menos usei na vida toda. Mas aí eu me voltava para algum dos conhecidos, e toda vez que tentava falar sueco de novo, dava um jeito de inserir um bureau ao invés de byrå, ou um på ao invés de pour quando tornava a falar francês. Em outros tempos me soaria chique. Mas chego ao fim da rota falando em inglês com ambos, amigo e aeromoça. E se reclamar, falo duas vezes. (Ok, eles nunca reclamam. Os suecos, pelo menos).

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Aterrissamos em Paris para trocar de avião. A viagem, na verdade, era de Estocolmo para Barcelona. Um lugar em que você, brasileira, fica tentando pescar a palavra para saber se é catalão ou espanhol (eu e o meu espanhol de base portenha e nível avançado em Chapolim Colorado). A viagem era à trabalho, para tratar de coisas como workshops e team building da empresa, etc – o que poderia ser simplesmente descrito como quatro dias bêbados na volta do mar Mediterrâneo com meus colegas de trabalho (todos suecos). Muito diferente de fazer turismo com seus amigos, tente fazer turismo com pessoas de outra nacionalidade. Não aquele tipo de viagem que você faz com uma turma jovem, cada um vindo de um país diferente. Mas uma viagem em que você vá apenas com membros de um único país que não seja o seu. No final de um passeio de barco havia uma esteira estreita à nossa frente, e um funcionário do barco estava disposto a nos ajudar a desembarcar, visto que não havia nada onde pudéssemos nos segurar. Minha chefe, ao ver a mão do catalão estendida para si, não hesitou antes de segurar bem firme, sacudir e cumprimentar “adiós!”. Então ela, sozinha, saltou do barco em um pulo profissional. O cara ficou desconsertadíssimo. Eu ri.
Em algum momento da viagem ganhamos um tempinho livre para fazer o que quiséssemos. A maioria das pessoas simplesmente foi para o hotel dormir; eu fui para rua e aluguei uma bicicleta. Tinha somente duas horas para caçar todos os Gaudí (não pokémons, veja bem) que eu conseguisse. Em uma subida extenuante ao popular Parque Guell, fui questionada por um desconhecido “por que você não deixa a bicicleta lá embaixo e sobe a pé?”. A despeito da invasão ao meu silêncio, lhe dei o direito de ser respondido com um “porque sim” seco. E o cara me lançou isso: “olhe para você, você está suando como um homem!”. E ele ficou parado me esperando deixar a bicicleta. Eu continuei meu caminho rindo, resfolegando e ainda virei para ensiná-lo: “eu estou suando como um ser humano”. Deixa de ser metido, hombre.

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Eis que, depois de um ano e meio de Suécia – praticamente vivendo dentro de um board minimalista de design escandinavo no Pinterest – dar de cara com as misturas de estampas na Catalunha me causou um arrepio. E foi bom, viu. Deu um respiro, foi como abrir as portas para um mundo paralelo encantando, como se as paredes de todos os lugares estivessem infestadas de calor; ondas de felicidade incrustadas no concreto, na madeira. E assim como esse “respiro” visual, achei que meus ouvidos também ganhariam uma trégua. Afinal, faziam quatorze meses que eu não pisava em um país sequer que falasse alguma língua latina. Mas ao primeiro passo na praia, fui informada que toda a viagem se daria com instruções e debates em sueco. Muy bien, compañeros. E assim foi. Em uma das noites, na balada, alguém me perguntou onde as pessoas estavam indo. E eu, explicando que as pessoas estavam indo lá fora fumar, me senti muito malandra usando uma gíria que tinha aprendido na viagem. Respondi que eles estavam indo slakta en gås. E então descobri – do jeito mais vergonhoso possível – que isso era uma gíria para dizer que as pessoas estavam usando drogas. É, acontece.

A Catalunha ficou gravada em mim com o colorido das roupas estendidas para fora nas ruas, gosto de vinho branco gelado, cheiro de mar e o som de suecos falando sobre fluxo de trabalho com novas metas de entrega para os próximos dois anos.
Fazem quatorze meses que moro aqui, longe. E de tudo isso, aprendi que a palavra não salva o mundo nem as diferenças. Mas ela transforma as pessoas. Ah, as pessoas.
Jag kom till ett ställe där jag skulle stanna
i fyra nätter men jag stannade fyra år
Nån sade: Ni har vållat kommunen betydande utgifter
Jag sade: det här är min situation
En liten modig katt kom till min undsättning
Det var som en dröm men jag drömde inte
Cheguei num lugar onde iria ficar
quatro noites mas acabei ficando quatro anos
Alguém falou: Você ocasiona custos elevados ao município
Retruquei: essas são as minhas circunstâncias
Um felinozinho destemido foi a minha salvação
Aquilo até parecia sonho só que eu não estava sonhando
Tua Forsström
(poeta finlandesa – tradução de Luciano Dutra)
Esse texto foi originalmente escrito em setembro de 2016, publicado no meu antigo blog, Lagom Rocks.